sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Dispersos finalmente reunidos

Conheci Garibaldi Otávio, o Gari, há 43 anos, contando só até 2009. Lá por volta de 1966, eu trabalhava em Atualidades Médicas, como editor de texto - imaginem só o que a gente não faz para sobreviver! Eu era um "expert" em tradução de matérias médicas americanas que o Philip Querido, o gringo que era dono da revista brasileira, tinha o "copyright". Basicamente, era este o conteúdo e uma ou outra matéria brasileira, de autoria de repórteres, entre os quais se destacava o percuciente Haruo Okawara, então estudante de medicina e hoje um respeitado médico que eu e outros amigos, inclusive o Gari, consideramos o nosso gerontólogo.

O editor-chefe, Francisco José Pelucio, me disse um dia que estava com intenção de contratar um tradutor novo e pediu que eu lhe passasse um teste. No dia seguinte, ao chegar à revista já encontrei um jovem muito magro, de cab eça grande, encolhido no paletó, me esperando para o teste. Vi logo que era gente da "cortina do jabá", como era chamado o canto em que trabalhavam, na Última Hora, os nordestinos refugiados em São Paulo em razão golpe militar de 1964. Mineiro, auto-exilado, decididamente contra a ditadura, eu me dava muito bem com o pessoal do jabá, que encontrava de vez em quanto. Resolvi não dar o texto para traduzir na hora. Era melhor o candidato a emprego levá-lo, já que era um texto especializado, que exigia muita consulta a dicionários, e o devolvesse daí alguns dias.

Gari encarou o desafio e me trouxe a tradução, algo capenga, no prazo combinado. Vi que, como texto para uma revista médica, exigia um bom copidesque, mas que o tradutor redigia bem. E, com meu parecer favorável, Pelucio, ele próprio também ligado ao jabá, o contratou. Mas minha amizade com o novo tradutor, que, como vim a saber, era um ex-oficial de gabinete do governador deposto de Pernambuco, Miguel Arraes, começou mesmo no boteco nas proximidades. Convidei-o uma noite para tomar uma cerveja, e o papo se estendeu por horas.

Não aguentei muito permanecer naquela revista. Era obrigado a ler inúmeras matérias sobre os males que afligem a humanidade, as últimas novidades em cirurgias e em tratamentos sempre heróicos a que eram submetidos os pacientes e comecei a sentir sintomas estranhos. Às vezes tinha a impressão de que eu era portador de alguma todas aquelas doenças tratadas com tão seriedade pelos autores das matérias. E, vencido pela hipocondria, deixei a revista e me desloquei para o jornalismo de economia e para outros escritos, o que funcionou como um bálsamo.

O Gari também não ficou muito tempo. Logo encontrou um abrigo mais seguro nos suplementos da Folha de S. Paulo, território já desbravado pela turma do jabá. Depois trabahou como editor para uma empresa de consultoria em Porto Alegre, entrou e saiu da Gazeta Mercantil umas três vezes, uma delas para retornar ao Recife, onde fui encontrá-lo no velho Jornal do Commercio. De volta a São Paulo trabalhou na reitoria da USP, voltou à Gazeta Mercantil e, ultimamente, ei-lo em Pernambuco como assessor especial do governador Eduardo Campos, a quem conheceu na barriga da mãe, filha de Arraes. E lá permanece, com breves passagens por São Paulo, onde conta com uma multidão de amigos.

Boêmio dos dias úteis e inúteis, é conhecido como letrista, parceiro, entre outros, de Carlinhos Vergueiro. Em São Paulo,Gari é até hoje daquelas pessoas que todos os garçons dos bares mais frequentados pela numerosa classe dos compositores, músicos, admiradoras, jornalistas e adjacências conhecem e cumprimentam pelo nome. E, sem dúvida, alguns já o observaram escrevendo em um papel ao lado de outros companheiros que cantarolam. Ou sozinho num canto.

O amigo que conheço é mais que um bom letrista, o que já seria uma grande qualidade. É um poeta, dos melhores que conheço. Algumas vezes, ele me mostrou alguns de seus poemas e já o vi também fazer o mesmo com Aluizio Falcão, grande amigo comum, e com Jorge Wanderley, o poeta e tradutor de Shakespeare que perdemos por algum remate daqueles males de que tratava Atualidades Médicas, onde Jorge também operou (sua especialidade era escrever sobre cirurgias, área em que estava se especializando). Quando vinha a inspiração - hesitei em usar esse termo, tão desvalorizado pelos poetas, como João Cabral, que se esmeravam em trabalhar os versos - mas, enfim, quando lhe dava na telha, Gari escrevia em papel de embrulho de pão, quando estávamos em alguma padaria, em guardanapos de papel de restaurante ou nas costas de envelopes ou folhas com anotações que sacava do bolso. Assim, ele escreveu muitos de seus poemas, alguns dos quais ele mandou para a lata do lixo, outros ele guardou zelosamente. Alguns amigos, como eu, são possuidores desses textos de ocasião, que passaram depois pelo crivo autor ao longo dos anos.

A boa notícia é que os poemas dispersos de Garibaldi Otávio, escritos ao longo de décadas, foram agora, finalmente, enfeixados no livro "O Girassol", de capa dura como convém, com uma belíssima capa, editado pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), com um excelente prefácio de Aluizio Falcão, a cujo lançamento em outubro, no Recife, não pude, infelizmente estar presente. O Girassol é o título do primeiro, poema do livro, um clássico garibaldiano, conhecido por todos os iniciados. Mas tem muita coisa mais, inclusive as letras de algumas canções de que foi parceiro e que lhe renderam alguns cobres (espero que ainda lhe rendam). Aguardo o lançamento em São Paulo, que, certamente, será tão concorrido e tão festivo como o segundo casamento do Gari. Ele hoje está de novos e felizes amores, que o grudam à velha província natal. Como edições de poesia são limitadas, aí vai uma prova do biscoito fino do forno do poeta.

Acaso é estéril o pólen do meu desejo? Mais que desejo, o metal

da música da vontade.

E acaso o amor resiste a uma falsa dignidade?

Ah! O peso plúmbeo das respostas.

Há mais do que nós nessa jogada. Há o prazer como fel,

o soco da volúpia (terível dor da carne inanimada).

Há este querer antigo, e há

- esquivos pássaros de fogo que nos fogem -

o que não temos ainda

simplesmente por não termos procurado.

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